Nas últimas décadas, têm-se estudado várias vias de administração de fármacos, no entanto, a via oral continua sendo uma das mais utilizadas. Isto ocorre devido à sua conveniência, baixo custo e maior aderência ao tratamento pelo paciente [1].
Após administração oral, os fármacos contidos em formas farmacêuticas sólidas devem ter adequada solubilidade aquosa e permeabilidade intestinal para serem absorvidos, e atingirem sua concentração terapêutica na circulação sistêmica.
Estudos já demostraram que variações na formulação ou na técnica de fabricação podem gerar diferenças substanciais na absorção e na resposta terapêutica destes fármacos [2].
Desta maneira, métodos in vitro de absorção, introduzidos em um estágio inicial do design e desenvolvimento de medicamentos, podem contribuir para prever o comportamento da permeabilidade dos fármacos, e são essenciais para melhorar o campo de entrega destes medicamentos, assim como reduzir o número de ensaios clínicos.
Como a permeabilidade intestinal do fármaco pode ser monitorada in vitro?
A previsão do comportamento do fármaco após a sua administração por via oral pode ser realizada com estudos relacionados as características do fármaco, como solubilidade e permeabilidade.
Nos modelos experimentais de permeabilidade é possível monitorar a fração dissolvida do fármaco que atravessa determinadas membranas, e, assim, presumir o seu comportamento no organismo humano [3].
Por exemplo, existem vários modelos in vitro baseados em células que possibilitam a determinação da permeabilidade dos fármacos através de membranas do trato gastrintestinal [4, 5].
Estudos de permeabilidade utilizando células Caco-2
Os ensaios in vitro utilizando membranas celulares compostas por células de adenocarcinoma de cólon humano (Caco-2) tornaram-se uma excelente alternativa no estudo e previsão da permeabilidade de fármacos, e são o método in vitro padrão-ouro usado para tais fins [6].
Durante sua cultura em filtros permeáveis e porosos, as células Caco-2 se diferenciam espontaneamente em enterócitos, formando uma membrana composta de células em monocamada aderidas por junções e apresentam como vantagem a rápida multiplicação celular.
Muitos estudos já revelaram que a absorção oral humana de compostos se relaciona com sua permeabilidade aparente (Papp), calculada por meio da quantificação da fração permeada através da monocamada de células Caco-2 em função do tempo [7]. Portanto, a permeabilidade através destas células é um valioso índice para estimar a absorção de compostos pela administração oral.
O modelo utilizando células caco-2 pode ser utilizado pela indústria farmacêutica na descoberta de novos fármacos ou como sistema integrado a métodos de dissolução para predizer a relação dissolução-absorção.
Além disso, as células Caco-2 também podem ser usadas para prever a via de transporte no intestino, e estudar a absorção de drogas encapsuladas em nanopartículas lipídicas [5,8].
Exemplos de ensaios in vitro para simular a absorção intestinal utilizando células Caco-2
Embora a anfotericina B (AmB), um antibiótico empregado no tratamento de infecções fúngicas sistêmicas graves e doenças parasitárias, tenha sido usada clinicamente por seis décadas, ela causa vários efeitos adversos agudos e subagudos como febre, anemia e nefrotoxicidade [9,10]. Além disso, requer administração intravenosa e cuidados especiais em ambiente hospitalar.
De acordo com Sistema de Classificação Biofarmacêutica (BCS), a AmB é um medicamento de classe IV, portanto, tem baixa solubilidade em água e baixa permeabilidade de membrana [11].
Essas propriedades são agravadas pela baixa estabilidade da AmB no ambiente ácido do suco gástrico, tornando sua administração oral difícil. Assim, a AmB é atualmente administrada principalmente em forma micelar (com deoxicolato como um agente solubilizante) e formulações à base de lipídios.
Num estudo publicado na revista J. Pharm. Biomed. Anal., os autores desenvolveram e caracterizaram um sistema de nanopartículas composto por AmB encapsuladas em carreadores lipídicos nanoestruturados, e observaram que a AmB encapsulada adquiriu uma conformação menos tóxica, o que aumentou sua segurança em modelos in vitro [12].
Num outro artigo, publicado na revista Journal of Drug Delivery Science and Technology, os autores avaliaram o transporte intestinal da AmB encapsulada utilizando a monocamada de Caco-2 como modelo in vitro, como uma nova opção terapêutica da AmB. Adicionalmente, a influência de um indutor da absorção (quercetina) também foi investigada [5].
Um primeiro conjunto de experimentos demonstrou o coeficiente de absorção de permeabilidade como Papp = 0,456 × 10-6 cm s-1 para AmB isolada, e foi para 0,631 × 10−6 cm s−1 quando encapsulada em nanopartículas lipídicas [5].
A quercetina coadministrada com AmB encapsulada melhorou ainda mais a absorção de AmB encapsulado, aumentando em 52% o Papp para 0,693 × 10-6 cm s-1. A quercetina poderia estar agindo para promover a absorção das nanopartículas lipídicas [5].
A captação intracelular de AmB pela monocamada de Caco-2 após 3 h também foi analisada, e a porcentagem em massa quantificada nos experimentos foram 2,79 ± 0,06% para AmB isolada, 0,38 ± 0,09% para AmB encapsulada em nanopartículas lipídicas e 1,6 ± 0,1% para AmB encapsulada em nanopartículas lipídicas na presença de quercetina [5].
A maior absorção celular da AmB foi observada no experimento com AmB isolada, sugerindo acúmulo livre da AmB na parte interna da membrana. Por outro lado, a AmB encapsulada em nanopartículas intactas atravessou toda a membrana, indicando que o nanocarreador lipídico aumentou o transporte da AmB na direção absortiva [5].
Esses resultados sugerem que o sistema de liberação de AmB baseado em nanopartículas lipídicas é uma estratégia promissora para aumentar a absorção oral da AmB.
Instrução normativa sobre a validação e ensaios de permeabilidade com células Caco-2
Diante da ampla utilização dos ensaios de permeabilidade utilizando células Caco-2, e dos resultados correlacionáveis com a permeabilidade intestinal em organismos saudáveis, uma nova instrução normativa - IN N° 182 entrou em vigor em 3 de outubro de 2022, regulamentando esses ensaios [13].
Essa instrução normativa está consoante a Resolução de Diretoria Colegiada - RDC nº 749, de 5 de setembro de 2022, dispondo sobre isenção de estudos de bioequivalência /biodisponibilidade relativa, ou outra que a substituir [14].
Conforme tal normativa, os resultados de ensaios de permeabilidade com células Caco-2 devem ser discutidos no contexto de dados farmacocinéticos em humanos disponíveis [13].
Se alta permeabilidade for inferida pelo ensaio in vitro com sistema de células, deve ser demonstrada que a permeabilidade é independente de transporte ativo [13].
Se a alta permeabilidade não for demonstrada, o fármaco é considerado de baixa permeabilidade para fins de classificação pelo SCB [13].
Dados adicionais de estabilidade do fármaco no trato gastrointestinal podem ser necessários, devendo ser observadas as seguintes condições:
I - Se balanço de massas for utilizado para demonstrar alta permeabilidade, a estabilidade do fármaco no trato gastrointestinal deve ser demonstrada, a menos que uma dose igual ou maior do que 85% (oitenta e cinco por cento) seja recuperada inalterada na urina;
II - Quando a demonstração de alta permeabilidade é suportada por ensaios com células Caco-2, a avaliação de estabilidade no trato gastrointestinal é requerida;
III - A estabilidade no trato gastrointestinal pode ser documentada usando fluidos intestinais e gástricos compendiais ou simulados, mas outros métodos relevantes podem ser usados quando devidamente justificados;
IV - A solução contendo o fármaco deve ser incubada a 37 °C por um período representativo do contato do fármaco com os respectivos fluidos corporais, como uma hora no fluido gástrico e três horas no fluido intestinal;
V - A concentração do fármaco deve ser determinada por método validado;
VI - Uma degradação significativa do fármaco, acima de 10% (dez por cento), impede a classificação de alta permeabilidade pelo SCB [13].
Desta maneira, as novas diretrizes regulatórias sobre a metodologia com monocamada de Caco-2 como modelo in vitro para ensaios de permeabilidade independente dos mecanismos de transporte ativo, permitirão substituir os testes clínicos por testes in vitro, contribuindo para a redução do número de estudos utilizando voluntários humanos.
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Referências:
[1] Skelly, JP.; Amidon, GI.; Barr, WH.; Benet, LZ.; Carter, JE.; Robinson, JR; Shah, VP.; Vacobi, A. In vitro and in vivo testing and correlation for oral controlled/modified-release dosage forms. Pharm. Res, v. 7, p. 975-982, 1990.
[2] ROUGE, N.; BURI, P.; DOELKER, E. Drug absorption sites in the gastrintestinal tract and dosage forms for site-specific delivery. Int. J. Pharm., v. 136, p. 117-139, 1996.
[3] GINSKI, J.M.; TANEJA, R.; POLLI, J.E. Prediction of dissolution-absorption relationships from a continuous dissolution/Caco-2 systems. AAPS Pharm. Sci., v.1, n. 3, p. 1-12, 1999.
[4] Carla Pereira, Joana Costa, Bruno Sarmento, Francisca Araújo, 3.3 - Cell-based in vitro models for intestinal permeability studies, Editor(s): Bruno Sarmento, Concepts and Models for Drug Permeability Studies, Woodhead Publishing, 2016, Pages 57-81, ISBN 9780081000946, https://doi.org/10.1016/B978-0-08-100094-6.00005-5.
[5] Maraine Catarina Tadini, Giulia Ballestero, Icaro Salgado Perovani, Nayara Cristina Perez de Albuquerque, Ana Luiza Aguilera Forte, Franciane Marquele-Oliveira, Anderson Rodrigo Moraes de Oliveira, Predicting absorption of amphotericin B encapsulated in a new delivery system by an in vitro Caco-2 cell model, Journal of Drug Delivery Science and Technology, Volume 71, 2022, 103345, ISSN 1773-2247, https://doi.org/10.1016/j.jddst.2022.103345.
[6] S.W. Yee In vitro permeability across caco 2 cells can predict in vivo absorption in man
Pharm. Res. (N. Y.), 14 (1997), 10.1023/A:1012102522787.
[7] TANAKA, Y. et al. Characterization of Drug Transport Through Tight-Junctional Pathway in Caco-2 Monolayer: Comparison with Isolated Rat Jejunum and Colon, Pharmaceutical Research, V.12, p. 523–528, 1995.
[8] J. Keemink, C.A.S. Bergstr¨om, Caco-2 cell conditions enabling studies of drug absorption from digestible lipid-based formulations, Pharm. Res. (N. Y.) 35 (2018), https://doi.org/10.1007/s11095-017-2327-8.
[9] J. Zielińska, M. Wieczór, P. Chodnicki, E. Grela, R. Luchowski, Ł. Nierzwicki, T. Bączek, W.I. Gruszecki, J. Czub Self-assembly, stability and conductance of amphotericin B channels: bridging the gap between structure and function Nanoscale, 13 (2021), pp. 3686-3697, 10.1039/d0nr07707k
[10] N.R.H. Stone, T. Bicanic, R. Salim, W. Hope Liposomal amphotericin B (AmBisome®): a review of the pharmacokinetics, pharmacodynamics, clinical experience and future directions Drugs, 76 (2016), pp. 485-500, 10.1007/s40265-016-0538-7.
[11] R. Ghadi, N. Dand BCS class IV drugs: highly notorious candidates for formulation development J. Contr. Release, 248 (2017), pp. 71-95, 10.1016/j.jconrel.2017.01.014.
[12] Tadini, A.M. de Freitas Pinheiro, D.B. Carrão, A.L.S. Aguillera Forte, S. Nikolaou, A.R.M. de Oliveira, A.A. Berretta, F. Marquele-Oliveira Method validation and nanoparticle characterization assays for an innovative amphothericin B formulation to reach increased stability and safety in infectious diseases J. Pharm. Biomed. Anal., 145 (2017), pp. 576-585, 10.1016/j.jpba.2017.06.034.
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